Abapuru - Tarsila do Amaral
Dormências

Era uma vez o Vento semeador com uma tonelada de sementes debaixo do braço.
Destino: »» terra de chã.
Missão: »» propagar algumas, talvez uma, uma só seria suficiente.
E as sementes foram ao léu lançadas.
As da superfície, as aves do céu comeram-nas.
As demais, mais fundas, ficaram na terra, enterradas estavam. E assim foi:
milhares delas foram pasto (eram as mais rasas), repasto dos animais pequenos, que se justificaram, no “plano”, tatus, formigas, fungos e roedores, precisamos comer — diziam — e comeram.
Restaram muitas sementes, exageradas são as sementes — você já cortou ao meio um tomate, já reparou numa espiga de milho, cada um daqueles grãozinhos — são muitos —
[é um: um-um, perfeitamente um, perfeitamente vida, um, uno um-Eu, um-Tu, também pode ser. —— Quem?! ——]
que as sementes são fartas e o Vento generoso, sobram sempre muitas sementes enterradas, que o mesmo Vento tangedor de nuvens manda tanger gravetos e poeiras, e as sementes, cobertas são — prudência de protegê-las, a nível vário.
À primeira chuva, explodiram as mais apressadas, brotaram superficiais, e se esbarraram no verão calcinado e de sede sucumbiram.
Noutra chuva, outra leva nasceu, mas os pássaros ainda estavam famintos e lhes ceifaram todos os brotos.
E mais outra, e mais outra, sempre mais uma leva de sementes nasciam e sucumbiam: um raspar das enxadas, espelhava-se o chão e, no outro dia, a neblina, o orvalho, a terra, o sol, parideira forja de sol-quente-e-terra-úmida, húmus e quente, novas sementes desabrochavam intumescências.
É assim mesmo, minha amiga, a mata, a floresta, os chãos nossos de cada dia, que você, praciana, da cidade grande, imaginara melancias de máquinas japonesas de supermercado e computer; abra, por favor, sob qualquer lâmina, é fácil, atenciosamente, uma melancia vermelha e se dê conta que a “máquina do japonês”, de fabricar melancias, se máquina fosse, não teria produzido tanta semente, nem gerado casca grossa:
Não, não, o “plano”, o plano é outro!
Eis que [ in ] úteis as sementes desabrochavam: raspavam-nas à enxada; senão carícias de morte, ao tordon letal;
Eis que [ !! ] úteis as sementes desabrochavam: talvez ao gentil cordeirinho, para comer; talvez ao menino malino, para brincar.
Úteis ou inúteis, as sementes, entenda como puder, aivecas e cordeiros dão cabo de todas, nascituras “arvorezinhas”, abortadas serão, não lhes sobra ninguém.
O problema — ou a solução, ângulo de olhar, mero — é que as sementes são muitas, muitas mesmo (cinco milhões, dizem, de-cada-vez, é a do homem-semente), e finalmente, depois de muitas luas, muitas, difícil dizer quantas, o camponês se esquecera, em pousio aquelas terras deixara, talvez se mudara para a cidade grande; o cordeirinho, de há muito deslanado fora, e o menino, malino, crescera e também fugira, quando, finalmente, quando uma sementinha, bem funda, dormia espargido sono de planejada dormência: é agora, ela disse aos botões dela, e brotou velocíssima:
os pássaros momentaneamente fartos com outras bolotas, que finalmente:
fiat, fiat silva!
Algum Plano?
—— Parece!
E um único pé de assa-peixe naufragou a pastagem inteira: alqueires, ares, hectares, acres, acrósticos, apócrifos, a natureza voltou: intacta!
E aquelas palavras minhas, de século-semente, soterrada palavra quando uma sementeira foi plantada e devastada, ínvia vereda, mulher-menina: eu sei, lá debaixo, no fundo daquele canteiro, de um velho canteiro, quase caindo pelos esteios e seios, resta uma flor , que das tuas lágrimas, do teu vergel, brotará semente
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e dos meus olhos ermos, a palmeira, o cacto

Soares Feitosa


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