POEMA LIQUEFEITO



Sob o olhar dos olhos-d'água.



Faça-se o poema
em um piscar de olho-d’água.

Poema dos olhos-d’água
com sobrancelhas e cílios postiços.

Poema do espelho-d’água
que fez careta

mas depois sorriu para o menino.

Poema do copo-d'água
e do galhinho de arruda
que salvam as crianças
do mau-olhado e do vento-caído.

Poema da mãe de leite
que os botos levaram
para amamentar os recém-nascidos
que as próprias mães jogaram no rio.

Poema da mulher cega


levada pela cobra-grande
para cantar ladainha
na procissão dos afogados.

Poema da mulher parteira

que o rio arrastou pelos cabelos
para aparar os filhos da mãe-d'água.

Poema dos afogados
que tentaram beber toda água do rio
na esperança de morrerem enxutos.

Poema dos afogados
que espantam o frio da noite
sentados ao pé da fogueira de assa-peixe e peixe-lenha.

Poema dos afogados
que leram e releram o volume do rio
queimando as pestanas
na luz acesa dos olhos-d’água.

Poema do dicionário do rio


no qual a palavra peixe
só falta saltar em patas
ao mugir do peixe-boi pastando
enquanto o peixe-cachorro ladra.

Poema da Maria do assopro
levada pela mãe-do-rio
só para tirar cisco dos olhos-d’água.

Poema das meninas nativas
que morreram afogadas
e foram aprender a bordar
o (v)estuário do rio
com peixe-agulha e linha-d’água




in Leônidas Arruda

2 comentários:

  1. Maravilhoso...
    :-)

    Beijinhos,


    ***maat

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  2. Hanah, lindíssimo esse poema! Abraços floridos da Angela Ursa :))

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