Dilúvio da Infância

Leônidas Arruda

I
O céu está desabando na cabeceira do rio.
A mãe-d’água e a mãe-do-rio
já fizeram trato de alagação.

Vai ser ano de enchente grande.
A cobra-grande já vem descendo o rio
puxando a água pelos cabelos.

Até a terra firme vai tremer embaixo d’água.
As ilhas mais altas
vão ter que dar um mergulho no rio.

II
A gente dorme e só sonha com água.
E tem pesadelo
quando sonha com a roça alagada:
o milharal com água no pé da espiga
e o mandiocal na ponta dos pés
em tempo de se afogar.

Os bichos do mato vão ficar ilhados
rastejando a própria fome
ou vão morrer afogados
se não forem colhidos
por um braço de terra.

Mulher grávida vai ter filho
na cumeeira da casa
e os meninos vão ter que dormir em penca
( amarrados na cintura do pai )
senão a sucuriju leva de um por um.

Homem e mulher vão ser vistos
morando na forquilha do pé da samaúma.
Vai boiar de boca em boca
a notícia da mãe-da-mata
vista no olho do pé da castanheira.

O peixe-elétrico vai pôr eletricidade
na corrente d’água
e vai morrer eletrocutado
quem pegar na ponta da correnteza
ou no fio d’água descascado.

A vida vai ficar de bubuia no meio do rio
sem achar um ombro de barranco
para se encostar.

III
O padre já mandou fincar
um cruzeiro bem alto na frente do rio
que é para a cidade não se afogar
e o altar da igreja
não virar ninho de cobras-d’água.

Mas o rio vai subir o porto
e invadir algumas cidades
e outras vão desaparecer debaixo d’água
como previa a finada Damiana :
_ "Se tiver prefeito ladrão
e vigário vigarista a cidade afunda."

O rio vai alargar-se e alagar até cemitério.
E vai afogar as almas (de)penadas
que não conseguiram voar para o céu.

IV
Os mais vividos vão contar casos
da enchente de 1944
quando o Manoel Sereia
( vendo sua casa alagando )
pegou um terçado amolado
dizendo que ia retalhar a água
e cortar as pernas do rio.

Vão vir à tona
os comentários de que o Mundico Faz-Tudo
foi enterrado vivo.
Porque seu Laudo de Exame Cadavérico
não confirmou a morte por afogamento.
Mas afirmando que só foram ingeridos
objetos luminosos
atestou morte por overdose de olhos-d’água.

Vai borbulhar na boca do povo
o dia em que o rio entrou na igreja
( depois de passar por cima do sacristão
que foi barrá-lo na porta )
e o padre americano
com medo de morrer afogado
( no alto da torre )
enforcou-se com o lençol d’água.

V
As noites de rio cheio parecem mais longas.
A gente acorda muitas vezes
e tem a impressão de ouvir o rio
batendo palmas no terreiro
e pedindo licença para entrar.

Numa dessas noites
eu acordei com o rio já dentro de casa.
A água lambendo as panelas do fogão
e a cobra-grande passando por baixo da rede.

Naquela noite
todo mundo lutou com a sucuriju e o jacaré
que a toda força queriam morar lá em casa.



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Um comentário:

  1. Querida, obrigado pela visita, obrigado por haver colocado o poema "Dilúvio da Infância" neste site. Já assinei "Amazônia para sempre". Ali ficou minha infância e juventude e alí mora a vida para sempre. Beijo.

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